Por que o controle de dados pessoais é tão importante para o consumidor cidadão?

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O historiador israelense, Yuval Noah Harari, alerta: os donos dos dados serão os donos do futuro

“Quem é o dono dos dados?”

“Se quisermos evitar a concentração de toda a riqueza e de todo o poder nas mãos de uma pequena elite, a chave é regulamentar a propriedade de dados.  Antigamente a terra era o ativo mais importante no mundo, a política era o esforço por controlar a terra, e se muitas terras acabassem se concentrando em poucas mãos – a sociedade se dividia em aristocratas e pessoas comuns. Na era moderna, máquinas e fábricas tornaram-se mais importantes que a terra, e os esforços políticos focam-se no controle desses meios de produção. Se um número excessivo de fábricas se concentrasse em poucas mãos – a sociedade se dividiria entre  capitalistas e proletários. Contudo, no século XXI, os dados vão suplantar tanto a terra quanto a maquinaria como o ativo mais importante, e a política será o esforço por controlar o fluxo de dados. Se os dados se concentrarem em muito poucas mãos – o gênero humano se dividirá em espécies diferentes.

A corrida para obter dados já começou, liderada por gigantes como Google, Facebook e Tencent. Até agora, muitos deles parecem ter adotado o modelo de negócios dos ´mercadores da atenção´.  Eles capturam nossa atenção fornecendo-nos gratuitamente informação, serviços e entretenimento, e depois revendem nossa atenção nos anunciantes. Mas provavelmente visam a muito mais do que qualquer mercador de atenção anterior. Seu verdadeiro negócio não é vender anúncios. E sim, ao captar nossa atenção, eles conseguem acumular imensa quantidade de dados sobre nós, o que vale mais do que qualquer receita de publicidade. Nós não somos seus clientes – somos seu produto.

A médio prazo, esse acúmulo de dados abre caminho para um modelo de negócios inédito, cuja primeira vítima será a própria indústria da publicidade. O novo modelo baseia-se na transferência da autoridade de humanos para algoritmos, inclusive autoridade para  escolher e comprar coisas. Quando algoritmos escolherem e comprarem coisas para nós, a indústria da publicidade  tradicional irá à falência. Considere o Google. O Google quer chegar a um ponto no qual poderemos perguntar-lhe qualquer coisa e obter a melhor resposta do mundo. O que vai acontecer quando pudermos perguntar ao Google: “Oi, Google, com base em tudo o que você sabe sobre carros e com base em tudo o que você sabe sobre mim (inclusive minhas necessidades,  meus hábitos, minhas opiniões sobre o aquecimento global, e até mesmo minhas ideias sobre o Oriente Médio), qual é o melhor carro para mim?” Se o Google for capaz de dar uma boa resposta, e se aprendermos com a experiência a confiar no bom senso do Google em vez de em nossos sentimentos facilmente manipuláveis, qual será a utilidade das propagandas de carro?

No longo prazo, ao reunir informação e força computacional em quantidade suficiente, os gigantes dos dados poderão penetrar nos mais profundo segredos da vida, e depois usar esses conhecimento não só para fazer escolhas por nós ou nos manipular mas também na reengenharia da vida orgânica e na criação de formas de vida inorgânicas. Vender anúncios pode ser necessário para sustentar os gigantes no curto prazo, mas eles frequentemente avaliam aplicativos, produtos e companhias em função dos dados  que colhem deles, e não do dinheiro que eles geram. Um aplicativo popular pode não ter um bom modelo de negócios e até mesmo perder dinheiro no curto prazo, mas na medida em que absorver dados pode valer bilhões. Mesmo que não se saiba como fazer dinheiro com dados hoje em dia, vale a pena tê-los porque eles podem ser a chave para controlar e modelar a vida no futuro. Não tenho certeza de que os gigantes dos dados pensam explicitamente nesses termos, mas suas ações indicam que dão mais valor aos dados acumulados do que a meros dólares e centavos.

Humanos comuns vão descobrir que é muito difícil resistir a esse processo. No presente, as pessoas ficam contentes de ceder seu ativo mais valioso – seus dados pessoais – em troca de serviços de e-mail e vídeos de gatinhos fofos gratuitos. É um pouco como as tribos africanas e nativas  americanas que inadvertidamente venderam países inteiros a imperialistas europeus em troca de contas coloridas e bugigangas baratas. Se, mais tarde, pessoas comuns decidirem tentar bloquear o fluxo de dados, podem descobrir que isso é cada vez mais difícil, especialmente se tiverem chegado a ponto de depender da rede para todas as suas decisões, até mesmo para sua saúde e sua sobrevivência física.

Humanos e máquinas poderão se fundir tão completamente que os humanos não serão capazes de sobreviver se estiverem desconectados da rede. Estarão conectados desde o útero, e, se em algum momento da vida você optar por se desconectar, as companhias de seguro talvez se recusem a lhe fazer um seguro de vida, empregadores talvez se recusem a empregá-lo, e serviços de saúde talvez se recusem a cuidar de você. Na grande batalha entre saúde e privacidade, a saúde provavelmente vencerá sem muito esforço.

À media que, através de sensores biométricos, cada vez mais dados fluírem de seu corpo e seu cérebro para máquinas inteligentes, será fácil para corporações e agências de governo conhecer você, manipular você e tomar decisões por você. Mais importante ainda, eles serão capazes de decifrar os mecanismos profundos de todos os corpos e cérebros, e com isso adquirir o poder de fazer a engenharia da vida. Se quisermos evitar que uma pequena elite monopolize esses poderes, que parecem divinos, e se quisermos impedir que a humanidade se fragmente em castas biológicas, a questão-chave é: quem  é o dono dos dados? Os dados do meu DNA, meu cérebro e minha vida pertencem a mim, ao governo, a uma corporação ou ao coletivo humano?

(…)

A propriedade privada de seus próprios dados soa mais atraente do que qualquer dessas opções, mas não está claro o que isso quer dizer. Tivemos milhares de anos experiência de regulação da propriedade da terra. Sabemos construir uma cerca em torno de um campo, pôr um guarda no portão e controlar quem pode entrar.  Nos dois séculos passados nos tornamos extremamente sofisticados  em regular a propriedade da indústria – hoje posso comprar ações e ser dono de um pedaço da General Motors e um pedacinho da Toyota. Mas não temos muita experiência em regular a propriedade de dados, que é inerentemente uma tarefa mais difícil, porque, ao contrário da terra e de máquinas, os dados estão em toda parte e em parte alguma ao mesmo tempo, podem movimentar-se à velocidade da luz, e podem ser indefinidamente copiados.”

Assim , faríamos melhor em invocar juristas, políticos, filósofos e mesmo poetas para que voltem sua atenção para essa charada: como regular a propriedade de dados? Essa talvez seja a questão política mais importante de nossa era. Se não formos capazes de responder a essa pergunta logo, nosso sistema sociopolítico pode entrar em colapso. As pessoas já estão sentindo a chegada do cataclismo. Talvez seja por isso que cidadãos do mundo inteiro estão perdendo a fé na narrativa liberal, que apenas uma década atrás parecia irresistível.

Como, então, avançar a partir daqui, e como lidar com os imensos desafios das revoluções da biotecnologia e da tecnologia da informação? Talvez os mesmos cientistas e empresários responsáveis pelas disrupções do mundo contemporâneo consigam alguma solução tecnológica? Por exemplo, será que algoritmos em rede poderão fornecer as estruturas de uma comunidade humana global que poderia ser, coletivamente, dona de todos os dados e supervisionar o desenvolvimento da vida?”

Trecho do livro “21 lições para o século 21”, de autoria de Yuval Noah Harari.

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