Consumismo versus consumo

 

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“Talvez não exista pior privação, pior carência, do que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma por humanidade.”

Pierre Bourdieu, Meditações Pascalianas

 

Aparentemente, o consumo é algo banal, até mesmo trivial. É uma atividade que fazemos todos os dias, por vezes de maneira festiva, ao organizar um encontro com os amigos, comemorar um evento importante ou para nos recompensar por uma realização particularmente  – mas a maiores das vezes é de modo prosaico, rotineiro, sem muito planejamento antecipado nem reconsiderações.

Se reduzido à forma arquetípica do ciclo metabólico de ingestão, digestão e excreção, o consumo é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos com todos os outros organismos vivos. Visto dessa maneira, o fenômeno do consumo tem raízes tão antigas quanto os seres vivos – e com toda certeza é parte permanente e integral de todas as formas de vida conhecidas a partir de narrativas históricas e relatos etnográficos. Ao que parece, plus ça change, plus c´ést la même chose… Qualquer modalidade de consumo considerada típica de um período específico da história humana pode ser apresentada sem muito esforço como uma versão ligeiramente modificada de modalidades anteriores. Nesse campo, a continuidade parece ser a regra; rupturas, descontinuidades, mudanças radicais, para não mencionar transformações revolucionárias do tipo divisor de águas, podem ser (e com frequência são) rejeitadas como puramente quantitativas, em vez de qualitativas. E ainda assim, se a atividade de consumir, encarada dessa maneira, deixa pouco espaço para a inventividade e a manipulação, isso não se aplica ao papel que foi e continua sendo desempenhado pelo consumismo nas transformações do passado e na atual dinâmica do modo humano de ser e estar no mundo. Em particular, não se aplica ao seu lugar entre os fatores determinantes do estilo e da qualidade da vida social e ao papel como fixador de padrões (um entre muitos ou o principal) das relações inter-humanas.

Por toda a história humana, as atividades de consumo ou correlatas (produção, armazenamento, distribuição e remoção de objetos de consumo) têm oferecido um suprimento constante de ‘matéria-prima’ a partir da qual a variedade de forma de vida e padrões de relações inter-humanas pôde ser moldada, e de fato, o foi, com a ajuda da inventividade cultural conduzida pela imaginação. De maneira mais crucial, como um espaço expansível que se abre entre o ato da produção e o do consumo, cada um dos quais adquiriu autonomia em relação ao outro – de modo que puderam ser regulados, padronizados e operados por conjuntos de instituições mutuamente independentes. Seguindo-se à ‘revolução paleolítica’ que pôs fim ao modo de existência precário dos povos coletores e inaugurou a era dos excedentes e da estocagem, a história poderia ser escrita com base nas maneiras como esse espaço foi colonizado e administrado.

Foi sugerido que um ponto de ruptura de enormes consequências, que poderíamos argumentar, mereceria o nome de ‘revolução consumista’, ocorreu milênios mais tarde, com a passagem do consumo ao ‘consumism’, quando este, como afirma Colin Campbell (Elusive Consumption, Berg, 2004), tornou-se “especialmente importante, se não central” para a vida da maioria das pessoas, o “verdadeiro propósito da existência.” E quando “nossa capacidade de querer, desejar, ansiar por e particularmente de experimentar tais emoções repetidas vezes de fato passou a sustentar a economia” do convívio humano.

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O ‘consumismo’ chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho. Como insiste Mary Douglas (In the Active Voice, Routledge and Kegan Paul, 1988), “a menos que saibamos por que as pessoas precisam de bens de luxo (ou seja bens que excedem as necessidades de sobrevivência) e como os utilizam, não estaremos nem perto de considerar com seriedade os problemas da desigualdade.”

De maneira distinta do consumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como indivíduos, o consumismo  é um atributo da sociedade. Para que uma sociedade adquira esse atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar, dever ser, tal como a capacidade de trabalho na ‘sociedade de produtores’, destacada (‘alienada’) dos indivíduos e reciclada/reificada numa força externa que coloca a ‘sociedade de consumidores’ em movimento e a mantém em curso como uma forma específica de convívio humano, enquanto ao mesmo tempo estabelece os parâmetros específicos para as estratégias individuais de vida que são eficazes e manipula as probabilidades de escolha e conduta individuais.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer a felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada ‘agora’ sucessivo.

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A sociedade de consumo tem como base de suas alegações a promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pôde alcançar, ou mesmo sonhar, mas a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o desenho continua insatisfeito; mais importante ainda, quando o cliente não está ‘plenamente satisfeito’ – ou seja, enquanto não se acredita que os desejos que motivaram e colocaram em movimento a busca da satisfação e estimularam experimentos consumistas tenham sido verdadeira e totalmente realizados.

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A fenda escancarada entre a promessa e seu cumprimento não é sinal de defeito nem efeito colateral da negligência, tampouco resulta de um erro de cálculo. O domínio da hipocrisia que se estende entre as crenças populares e as realidades das vidas dos consumidores é condição necessária para que a sociedade de consumidores funcione de modo adequado. Se a busca por realização deve prosseguir e se as novas promessas devem ser atraentes e cativantes, as promessas já feitas devem ser rotineiramente quebradas e as esperanças de realização frustradas com regularidade. Cada uma das promessas deve ser enganadora, ou ao menos exagerada. Do contrário, a busca acaba e o ardor com que é feita (e também sua intensidade) caem abaixo do nível necessário para manter a circulação de mercadorias entre as linhas de montagem, as lojas e as latas de lixo. Sem a repetida frustração dos desejos, a demanda logo se esgotaria e a economia voltada para o consumidor ficaria sem combustível. É o excesso da soma total de promessas que neutraliza a frustração  causada pelas imperfeições ou defeitos de cada uma delas e permite que a acumulação de experiências frustrantes não chegue a ponto de solapar a confiança na efetividade essencial dessa busca.

Além de ser um excesso e um desperdício econômico, o consumismo também é, por essa razão, uma economia do engano. Ele aposta na irracionalidade dos consumidores, e não em suas estimativas sóbrias e bem informadas; estimula emoções consumistas e não cultiva a razão. Tal como ocorre com o excesso e o desperdício, o engano não é um sinal de problema na economia de consumo. Pelo contrário, é sintoma de sua boa saúde e de que está firme sobre os trilhos, é a marca distintiva do único regime sob o qual a sociedade de consumidores é capaz de assegurar sua sobrevivência.

Trechos selecionados do livro “Vida para Consumo”, Zygmunt Bauman, 2008 (Jorge Zahar Editor).

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